“Caninos Brancos” ou “Chamado Selvagem”?
Postado em jan. 31, 2020
Romances de Jack London e suas infinitas adaptações
Integrantes da clássica literatura americana, “Caninos Brancos” e “Chamado Selvagem” são marcantes obras de Jack London, contadas através do ponto de vista de um lobo e um cão, respectivamente, que precisam adquirir a habilidade de se ajustar em um ambiente que não lhes é natural.
Há pouco tempo, em uma rasa busca pelos títulos no Google, foi possível analisar certa confusão entre as obras. Naturalmente, devido à sua popularidade, houveram várias versões cinematográficas para cada uma, e é aí que se dá o equívoco. Seja no ato da tradução ou dublagem, há vezes em que o filme de “Chamado Selvagem” é intitulado como “Caninos Brancos”, o que faz com que o espectador desavisado consuma uma produção acreditando ser a outra.
Para melhor explicar a obra, primeiro é necessário conhecer um pouco sobre o autor. Jack London nasceu em 1876, em São Francisco, e fora criado somente pela mãe e o padrasto, de quem adotou o sobrenome. Entre suas várias aventuras e tentativas de conseguir dinheiro para auxiliar no sustento da casa, acabou unindo-se a outros milhares de americanos que, em 1897, partiram rumo ao Alasca na famosa corrida do ouro. Embora sua expedição tenha sido um fracasso, foi de lá que sua inspiração para dois de seus mais famosos romances surgiu.
Em 1903 “O Chamado Selvagem” foi lançado, à princípio em formato de folhetim, e ninguém poderia imaginar que se tornaria um dos romances mais famosos da américa. Nele, vemos a trajetória de Buck, um cão mestiço da raça São Bernardo que é sequestrado por um funcionário de seu dono e é enviado para o Alasca na época da corrida do ouro. Havia um mercado crescente que fornecia, obviamente de forma ilegal, cães grandes, fortes e de pêlo longo, capazes de puxar trenós e suportar o frio caótico do Klondike para todos os destemidos que se empregavam na jornada pelo precioso metal.
Uma obra certamente atemporal, que levanta sutilmente questões imprescindíveis a respeito de civilização, poder, valores e a teoria da causa e efeito. Juntamente a Buck, aprendemos a desconfiar dos seres humanos e apontar suas falhas de caráter, enquanto o cão se adequa ao novo (e bruto) estilo de vida para o qual foi empurrado. Somente após um longo caminho cheio de penitências e maus tratos, o vemos assumir a mesma natureza selvagem de seus ancestrais.
Houveram, ao todo, sete adaptações da obra para o cinema ou televisão. Desde 1923 a intensa história de Buck vem sendo contada e, inclusive, está para sair este ano mais uma versão que contará com efeitos digitais para compor a trajetória do São Bernardo, trazendo Harrison Ford como protagonista.
Não há muito o que dizer sobre as primeiras versões (1923 e 1935), ambas focam mais nos humanos como protagonistas e não conseguem trazer à tona o ponto de vista, questionamentos e impressões de Buck, que é sempre apenas um agradável coadjuvante.
As versões de 1972 e 1976 são um pouco mais voltadas para Buck, ainda cedendo maior tempo de tela para os atores humanos, mas dando a entender que, finalmente, a história gira em torno do cão e não do homem. Porém, entre todas as versões já existentes, uma que chama bastante a atenção pela fidelidade ao romance é a de 1997.
Composta de mais delicadeza e atenção aos detalhes que suas antecessoras, não é difícil dizer que representa o livro muito bem. Os questionamentos e inteligentes conclusões de Buck são ressaltados em forma de narração, porém, o enfoque permanece durante todo o longa. Lado a lado com o cão, descobrimos os temores causados pela mão humana, que somente ganha um pouco de afeto através de Thornton.
Três anos após o lançamento de “Chamado Selvagem”, em 1906, Jack London lançou “Caninos Brancos”, que propositalmente traz uma história inversa a do cachorro Buck. Desta vez acompanhamos a história de um lobo, desde antes de seu nascimento. Na mesma terra gelada onde o São Bernardo encerra sua trajetória é que esta começa, com um ar tão selvagem quanto a outra.
Nascido da mistura de uma loba mestiça e um lobo puro, o filhote (posteriormente nomeado de Caninos Brancos) tem muito pouco de cachorro dentro de si. Após a morte do pai, ele e a mãe acabam encontrando um grupo de indígenas, e é no meio de uma matilha cruel e nenhuma demonstração de amor humano por parte dos índios que ele cresce e se torna um animal obediente, porém agressivo com os mesmos de sua espécie.
Ele acaba sendo comprado por um comerciante mal-intencionado, que o submete à uma vida de rinhas, maus tratos e raiva. Porém, em uma das lutas, quando estava perdendo pela primeira vez, é salvo por Weedon Scott, o primeiro ser humano a lhe erguer a mão para dar carinho em toda sua existência.
Assim como em “Chamado Selvagem”, o ponto alto de “Caninos Brancos” vem com as conclusões, pensamentos e dúvidas do lobo que, após uma vida inteira lutando contra seu instinto selvagem, temendo a mão humana e prestando obediência por medo, aprende o contato carinhoso, conforto e começa a ser domesticado, adaptando-se à uma realidade diferente de sua natureza primitiva e obedecendo por amor.
A primeira adaptação veio em 1936, e, assim como sua sucessora (de 1973) não há especificamente muito o que ressaltar sobre elas. Os humanos eram o foco da trama, e o cão servia apenas como peça chave para a solução de alguns problemas ou para protagonizar cenas açucaradas, como no final da segunda versão, em que ele nada atrás do barco, pedindo para acompanhar os homens, o que não bate com o livro.
Há a versão da Disney, de 1991, que provavelmente é a melhor que houve para o cinema, embora pouco remetesse ao livro. Temos também uma animação dos anos 90, de outro estúdio, que segue a narrativa semelhante à do romance, mas com a simplicidade característica de uma animação infantil, cheia de músicas e outros traços que desfazem sua profundidade filosófica.
A última versão veio em 2018, pela Netflix. Não expõe de qualquer forma as ideias ou conflitos de Caninos Brancos, e também pouco se relaciona com o livro. A beleza, neste caso, fica pela qualidade da animação, que é muito boa. Porém, o a trajetória do lobo percorre caminhos que definitivamente não foram traçados no romance de Jack London.
Desta forma, não é difícil identificar as obras e discerni-las quando se conhece de forma mais apurada as características que as compõem. Ficamos no aguardo da nova versão de “Chamado Selvagem”, que estreia em fevereiro, e esperamos que a confusão a respeito dos atemporais e envolventes romances, esteja, assim, desfeita.