O delicado pioneirismo de “Babe”
Postado em jan. 31, 2020
Romances de Jack London e suas infinitas adaptações
Desde 1983, com o lançamento do livro “The Sheep-Pig”, a trajetória do porquinho “Babe” vem encantando corações por todo o mundo. Com autoria de Dick King-Smith, um famoso escritor inglês voltado para o público infantil que criou mais de cem fábulas e contos ao longo dos anos.
O livro trata de forma simples e singela as aventuras e descobertas do atrapalhado leitãozinho “Babe”, que é adotado assim que chega por uma cadela de pastoreio e nutre um profundo interesse por, assim como ela, acompanhar o dono nas tarefas relacionadas às ovelhas no pasto. Seu desempenho excepcional e habilidade com o rebanho ganham a confiança do fazendeiro, que acaba se inscrevendo (e ganhando) o concurso de cães pastores.
Embora siga a linha principal do livro, o filme (lançado em 1995) é mais denso, dividido em capítulos para honrar a obra inicial, detalhadamente incrementado com outros personagens e questões que reverenciavam uma situação social. Não foi à toa que teve sete indicações ao Oscar de 1996, vencendo a categoria de Melhores efeitos visuais, e também ganhando em Melhor filme de comédia ou musical no Globo de Ouro. O ator James Cronwell, que interpreta o fazendeiro Arthur Hogget, atribuiu ao filme sua motivação para parar de comer carne.
Composto por diálogos interessantes que exemplificam a situação de cada animal do vale, apontando de forma natural as funções exercidas por cada um e como, num primeiro momento, soar diferente dos seus é considerado algo ruim. O mais inspirador é acompanhar junto a Babe a progressão deste aspecto, especialmente em um filme que desde o primeiro minuto já diz claramente à que veio.
A introdução do filme expõe alguns dos estereótipos mais famosos envolvendo porcos. Desde enfeites e ursinhos de pelúcia até atrações em circos e, obviamente, comida. Inclusive, é exatamente a este tópico que somos primeiramente introduzidos: A criação comercial de porcos em chiqueiros minúsculos.
As enormes leitoas deitadas em seus cubículos com filhotes em meio ao feno parecem tranquilas, sem nem mesmo imaginar o destino que as espera. E somos embalados pela voz de um narrador que nos acompanhará até o último minuto do filme. Sua primeira frase revela a estória que estamos prestes a acompanhar e, mesmo assim, passa despercebida à quem não dá ao filme sua devida dimensão:
“Esta é a história de como uma alma sem preconceitos mudou nosso vale para sempre”. Não haveria prévia mais correta e é importante estar atento à cada uma das palavras que compõem essa sentença pela verdade presente em cada uma delas. E então conhecemos Babe, que parece ser o único porquinho a se importar quando a mãe é retirada do chiqueiro. Tudo isso devido à uma equívoca concepção que os porcos possuem sobre serem levados por humanos, esperando por um lugar maravilhoso sendo que, na verdade, o que lhes aguarda é a morte.
Sem um motivo especifico, Babe acaba sendo escolhido e levado do chiqueiro diretamente para uma feira composta por premiações, venda de animais e etc. Estava sendo doado como brinde àquele que acertasse seu peso, uma espécie de rifa com pequena taxa de inscrição que serviria como arrecadação de fundos para um clube. E foi ali que seu destino se cruzou com o de Arthur Hoggett.
Aparentemente apenas acompanhando a esposa, Esmé, que estava ganhando a maioria dos prêmios envolvendo geleias para casa, Arthur fica curioso ao ouvir os gritos do porquinho e acaba aproximando-se da barraca. Ao ficar sabendo do que se trata, a princípio ele nega participar com o argumento de que não cria porcos, mas é convencido a tentar quando leva em consideração a ceia de Natal. Pois, afinal de contas, porcos só poderiam servir para criação ou, conforme dito antes, comida.
Porém, ao pegar o porquinho no colo, Arthur e Babe sentem uma estranha conexão. Logo em seguida, ele indica seu palpite sobre o peso do porquinho e vai embora.
Eis que Arthur descobre que acertou o peso do porquinho e vai buscá-lo. Então, Babe é trazido para a fazenda e colocado no celeiro, mas não sem que a cadela Flecha e seus filhotes possam vê-lo chegar. E essa é a primeira vez que somos expostos aos sentimentos dos cachorros sobre os outros animais. Quando um dos cãezinhos pergunta para a mãe se eles seriam comida para os humanos, da mesma forma que o porco, ela ri e nega dizendo que: “Eles só comem animais estúpidos como ovelhas, patos e frangos”.
Não há de sua parte qualquer explicação ou exemplificação para que ovelhas, patos e frangos sejam estúpidos, mas seus filhotes escutam e aprendem, da mesma forma que ela mesma deve ter aprendido um dia. Então, cedendo à curiosidade dos filhotes, ela os acompanha até o celeiro para observar o novo morador da fazenda.
Um dos filhotes de Flecha, ainda observando o porco, diz que ele parece mesmo ser estúpido. Então ela concorda: “Não tanto quanto as ovelhas, mas também são estúpidos”, e fala tão naturalmente, na frente de Babe, sem se preocupar se a ouviria ou o que pensaria, pois, aparentemente, em sua cabeça, ele não seria sequer capaz de algum raciocínio lógico, mas é surpreendida quando o porco rebate.
Não é preciso muito para que Flecha decida cuidar de Babe. Talvez por seu instinto maternal falar mais alto que seus preconceitos, ou pela forma educada e triste com que o porquinho conta sua história, o fato é que a cadela decide que irá ajudá-lo. Ela presta esclarecimentos à Rex, outro cão de pastoreio, pai de seus filhotes, que embora mostre-se como figura rígida e de respeito entre os outros animais, não contesta a decisão da companheira.
Logo em seguida, Babe é introduzido ao mundo da fazenda e como as coisas funcionam. Flecha e os filhotes lhe explicam questões como “só cães e gatos dentro de casa” e “seu trabalho é ficar aqui e comer tudo enquanto trabalhamos no pasto”. Ao questionar os motivos, as respostas variam, mas seguem sempre a mesma essência de “é como as coisas são”, o que implica que não há espaço para questionamentos em algo que, até o momento, parece funcionar muito bem aos olhos dos cães.
Por outro lado, há Fernando, um ganso que realmente tenta a todo custo ter alguma função para os humanos. Ele não é mais alheio às questões de alimentação (como Babe é, em sua inocência) e já sabe que, se quiser sobreviver ao Natal, é bom ser imprescindível aos “amos” (que é como os animais chamam o fazendeiro e a esposa) de alguma forma. Por isso, toda manhã, antes mesmo do galo, ele sobe no telhado e grunhe tentando imitar um cacarejo.
Porém, embora esteja convicto de que finalmente descobriu seu lugar na fazenda, Fernando é frustrado ao perceber que os humanos adquiriram um despertador. Determinado a se livrar do famigerado “galo mecânico”, o ganso precisa de uma alma inocente que possa lhe ajudar em sua missão e ninguém melhor que o porquinho recém-chegado para contribuir em sua empreitada.
Babe tem, além de uma visão pura e sem preconceitos, um bom coração. Ele não julga Flecha quando ouve uma ovelha reclamar sobre a forma que os “lobos” lhes tratavam no pasto, durante o dia, e também não cria preconceitos ao redor de Fernando, mesmo que já tenha ouvido os filhotes se queixarem da barulheira que ele faz de manhã, sobre como ele quer ser um galo e que: “Um dia a gente pega ele e come”.
Quando o pato lhe procura, Babe atende seu chamado e o segue, sem saber exatamente para o que estava se encaminhando. Ele ouve com atenção à narrativa de Fernando, que lhe conta os motivos de suas tentativas em cantar pela manhã e sobre como está destinado a virar comida de humanos somente por ter nascido. E assim, cheio de empatia e sem sequer imaginar que seu lugar na fazenda era exatamente o mesmo que o da ave, o porquinho aceita ajudar.
Tão ruim quanto o planejamento do roubo do despertador foi sua execução. Uma tragédia que não somente destrói parte da casa da fazenda como ainda resulta no sumiço de Fernando. O pato obviamente se esconde para não levar o sermão que Babe levou após os danos causados por suas boas intenções. Ele e os outros animais participam de uma espécie de corte, onde o leitão é o réu e Rex é o juiz, que proíbe o porquinho de manter sua amizade com a ave.
Rex estende-se por um longo período, sem que nenhum dos animais atreva-se a refutar qualquer uma das coisas que ele determina como regra. Ele impõe que todos os animais devem continuar agindo como sempre agiram, aceitando seus destinos e sendo gratos por isso.
Interessante é que a visão do cachorro é aceita sem que seja dito ou questionado os níveis de diferença entre a facilidade de aceitar ser um animal de pastoreio e a dificuldade em ser uma ave. Rex dorme em casa, perto da lareira, não está destinado a virar comida, tem uma função, reconhecimento, é tratado como superior (uma vez que os donos o colocam na função de “guia” das ovelhas) e recebe carinhos e elogios. E para Fernando ou Babe, o que sobra? Eles são alimentados, mas de resto, sua única função, como Flecha dissera anteriormente, é “ficar aqui e comer tudo”.
Ao mesmo tempo em que Babe segue com sua amizade com a ovelha Maa, os laços entre ele e Flecha se estreitam. Tudo vai ocorrendo de forma natural, conforme ele brinca com os filhotes ou segue as orientações da cadela, a proximidade é inevitável. Além disso, chega o momento em que o fazendeiro coloca todos os cãezinhos à venda.
Flecha e Rex assistem de camarote à venda de todos seus filhotes. Com os títulos que o pai da prole possui nos campeonatos de pastoreio, acaba sendo bem fácil conseguir interessados nos cãezinhos e é de partir o coração ver o olhar que a cadela lança, completamente impotente, sem nada que ela possa fazer se não aceitar que chegou a hora de se separar dos pequenos, mesmo que considerasse o momento inoportuno.
Por mais que já soubesse que, mais cedo ou mais tarde, seus filhotes acabariam lhe deixando, Flecha imaginou que isso ocorreria em outro momento. Desde o primeiro momento em que a vemos aparecer, quando consola Babe no celeiro, ela fala sobre ter sido retirada da mãe ainda muito cedo e que seus próprios filhos também se afastariam em breve. Porém, não tão breve assim.
Porém, inserida como estava sobre “aceitar o que é e ser grata por isso”, ela não se revolta ou se rebela, mas não consegue deixar de sentir-se triste. E é então que o porquinho, transbordando sua empatia e notando o sofrimento daquela que, uma vez, lhe consolara pelo mesmo motivo, gentilmente se aproxima e pergunta se pode chama-la de mãe. A resposta de Flecha não vem em palavras, mas em lambidas.
Logo em seguida chega o Natal. E, com ele, as preocupações de toda a fazenda. Há um interessante diálogo entre alguns animais como o cavalo, Fernando, Maa e uma vaca. Eles confabulam sobre o que seria o Natal, até que o pato chega à sua própria conclusão: “Ceia quer dizer morte, morte é carnificina. Natal é carnificina!”
Simultaneamente as atenções de Flecha voltam-se para Babe e acredito ser neste momento em que ela finalmente começa a perceber a diferença entre sua categoria na fazenda e a dos animais que estão destinados à virar refeição. E isso fica visível quando ela flagra a esposa do fazendeiro tirando as medidas do porquinho, algo que ela certamente já observara antes, e fica aflita, mesmo que não se atreva a verbalizar uma só palavra. Estava acostumada a ver vários patos e frangos irem para o forno, mas certamente nunca teria essa preocupação com um de seus filhotes.
Ao mesmo tempo, o próprio fazendeiro parece bem incomodado ao observar a esposa medindo o porquinho. Mesmo que, a princípio, houvesse entrado na “rifa” pensando somente na época do Natal, não estava muito inclinado a matar Babe, mesmo após toda a confusão com o despertador de alguns dias atrás. Por isso, mais tarde, ele inventa uma desculpa e convence a esposa a cozinhar outra coisa para a ceia.
Flecha somente consegue dormir aquela noite quando escuta o fazendeiro matar uma ave e conclui que Babe estará à salvo. O porquinho, mergulhado em inocência e completamente alheio ao terrível fim a que quase fora destinado, sem entender muito bem o que acontecia, adormece. E, no dia seguinte, descobrimos qual fora o animal escolhido para o prato principal da ceia de Natal.
Fernando conta para a vaca e para Babe que tratava-se de uma pata chamava Rosana, por quem ele nutria certa admiração. Então, enquanto os humanos divertem-se cortando os pedaços da ave, ele observa da janela e lamenta sua ausência. Então começa a planejar sua partida fazenda com a frase: “Deve haver bondosas criaturas em outras terras mais gentis”.
E, embora a vaca esteja praticamente no mesmo patamar que Fernando e Babe, ela aceitou que seu destino irá se resumir a produzir leite e, posteriormente, servir de alimento. Não há questionamentos por parte dela e nem vontade de ser outra coisa além do que já é ou encontrar alguma função além das que já tem. Por isso, ela diz que: “A única maneira de encontrar felicidade é aceitar que as coisas são do jeito que são”, ao que o pato responde: “Mas eu não aceito. Não vou bater as botas, eu vou nessa”.
Como disse uma vez para o porquinho, Fernando sabia que um dia iria virar o prato principal do jantar e também sabia que muitos outros animais preferiam não pensar ou fingir que não aconteceria. Porém, ciente de suas limitações e frustrado com todas as tentativas que realizou de ser útil sem obter resultados, ele pula na porteira e pede para que Babe abra. Então é lançado para sua sonhada liberdade e voa.
Se não fosse por ter acompanhado Fernando até a porteira, Babe, assim como o restante dos animais da fazenda, não ouviria o grito das ovelhas no pasto. Porém, uma vez que ouviu, não pôde simplesmente ignorar. Assim que percebe que há estranhos na propriedade tentando levar Maa e suas companhias, ele corre o mais rápido que consegue, gritando por Flecha.
A cadela não hesita em sair correndo assim que ouve o porquinho, o que chama a atenção do fazendeiro e de Rex. Simultaneamente, enquanto o homem observa pela janela, o cachorro vai até Flecha e Babe para entender o que está acontecendo. E, uma vez que a vê latindo, lhe chamando, Arthur Hoggett apenas segue seu comando e encaminha-se correndo para o pasto das ovelhas.
Por mais que Babe estivesse certo em chamar a atenção e Flecha estivesse certa em atender aos gritos do porquinho, Rex fica profundamente enciumado pela atenção (que antes era somente sua) dividida com eles. É a primeira vez que Arthur tem algum gesto de carinho com o leitãozinho, mas para o cachorro aquilo soa até mesmo como um insulto.
Afinal de contas, como pode, um porquinho, um leitão, que somente tem a finalidade de ser assado para o jantar, realizar uma ação digna de um elogio? Aquilo não fazia sentido na cabeça de Rex e ainda lhe colocava no mesmo patamar de Babe: um ser capaz de realizar atos que possam ser reconhecidos. Um porco ser um animal com inteligência era algo que ele simplesmente não poderia aceitar. Pois, como a própria Flecha dissera uma vez para seus filhotes, os suínos “não tanto quanto as ovelhas, mas também são estúpidos”.
O problema é que Flecha, por apegar-se ao porquinho, não pensa mais da mesma forma e não reage com desgosto diante do elogio que ele recebe. Pelo contrário, anima-se, diz que se não fosse por Babe, provavelmente teriam roubado todo o rebanho. E é assim que começa seu distanciamento de Rex, pois ela entende que precisa dar atenção ao filhote que adotou para si ao mesmo tempo em que precisa mantê-lo longe do companheiro.
O que nem Rex e nem Flecha sabiam é que o fazendeiro começaria a prestar mais atenção às coisas que o porquinho fazia. Completamente convencido que Babe possuía algum tipo de inteligência após presenciar seus chamados desesperados, convenceu-se de que aquilo era um aviso sobre a situação com as ovelhas. Por mais que sua família achasse que estava ficando maluco, após ver o leitão separando as galinhas no quintal, dividindo-as em brancas e marrons ele o leva ao pasto ao lado dos cães e coloca à prova sua teoria de que o animal era mesmo inteligente.
O fazendeiro comanda os cães para trazerem as ovelhas até o cercado e, após colher a lã, manda o porco retirá-las de lá. Maternal como sempre, Flecha dispõe-se a ensinar a Babe tudo que sabe sobre pastoreio para que ele desempenhe um bom papel. Então, à princípio, ele entra no cercado e age feito um cachorro, latindo e rodeando as ovelhas, que somente riem de sua performance e o fazem voltar cabisbaixo para perto da cadela.
Por mais que Flecha o incentive a tentar mais uma vez, ela o repreende quanto à tratativa com as ovelhas: “Você as trata como iguais. São ovelhas, são inferiores”, ao que o porquinho responde “Não, não são” e ela rebate “É claro que são”. É interessante ter a comprovação de que agora a cadela coloca Babe como um ser digno de seu próprio patamar. Ele é seu filhote agora, ele é inteligente e superior como ela e não há sombras de dúvida nisso.
Ou seja, todo seu argumento de que humanos comem animais estúpidos e de que os porcos são quase tão burros quanto as ovelhas fica de lado no momento em que ela decide que Babe é tão inteligente quanto ela e que não somente pode, mas deve inferiorizar os outros animais que não se equiparam à seu nível intelectual.
Mesmo com os gritos de Rex ordenando que parasse de falar, Flecha diz a Babe que não deve deixar que as ovelhas duvidem de sua superioridade, que abuse delas, insulte-as, faça o que for, que morda se necessário, mas que faça com que obedeçam! E ele volta, certo a cumprir todas as ordens de sua mãe adotiva, quando é duramente repreendido por Maa. Ela pergunta o que está acontecendo ao descobrir que o leitãozinho está tentando se tornar um cão pastor, diz: “Já há lobos demais no mundo (…) Um porquinho bonzinho assim só precisa pedir” e todas suas companheiras concordam, acatando ao seu pedido e saindo de forma ordenada do cercado. Arthur Hogget observa a cena, ainda sem saber ao certo o que está acontecendo, mas convencido da inteligência do animalzinho.
Ao mesmo tempo em que Babe conversava com as ovelhas, Rex expõe para Flecha sua indignação por ser humilhado daquela forma, especialmente pela linhagem que possui e por todo o papel que já desempenhou. Mais ultrajante ainda é ser comparado à um mero leitãozinho, um ser simplório demais para a visão do cachorro.
Porém, diante do bom desempenho do porquinho, dois pontos muito importantes podem ser tirados. Primeiro, não é necessário ser um cachorro para tirar e colocar ovelhas de um cercado. Segundo, não é necessário mordê-las ou subjugá-las para fazê-las compreender uma frase. Ao que tudo indica, não se trata de um grupo de animais tão estúpidos quanto Flecha ou Rex costumam imaginar e que as coisas podem ser resolvidas na conversa.
O fato é que, da mesma forma que se imaginava que porcos fossem estúpidos, se imagina que as ovelhas sejam mais ainda. Bem, se a primeira teoria estava errada, por qual motivo a segunda estaria correta? Babe percebia esses aspectos, mas resumia-se em dizer à Flecha que “é só pedir com delicadeza”, ao que a cadela apenas ri. O porquinho sugere conversar com Rex para expor sua opinião e ela impede, tomando esta tarefa para si.
O que ela não imaginava é que Rex estaria ainda mais zangado pelo bom desempenho de Babe. Como havia sido criado com a imposição de lugares dentro de uma fazenda, a ideia de tudo aquilo que estava acontecendo era incabível. Porém, também ciente de seu papel como cão, devendo fidelidade ao seu dono, repassava toda a raiva que sentia de ser humilhado ao ser substituído por um porquinho para os ombros de Flecha.
Só podia ser Flecha que colocava essas ideias na cabeça do porco, pois jamais que ele conseguiria pensar sozinho e muito menos tirar as ovelhas do cercado sem a orientação dela. Por nutrir toda essa raiva e frustração foi que atacou a companheira e, no calor do momento, acabou mordendo até a mão de Arthur, que tentou apartar a briga.
Quanto mais Arthur convivia com o porquinho, mais ele descobria que se tratava de um animal particularmente dedicado e inteligente. Especialmente agora, que não podia contar com o auxílio de Rex (que era mantido afastado pela agressividade) e com Flecha ferida, só restava Babe para lhe auxiliar no trato com as ovelhas. E, proporcionalmente ao sentimento de admiração do humano, crescia na esposa do fazendeiro a preocupação.
Esme Hoggett ficou preocupada quando o marido disse que o porco havia alertado sobre o roubo das ovelhas, e também achou estranho quando o levou para o pasto, junto dos cães. Mas agora, vendo-o contar com a ajuda de Babe todos os dias e ainda ensinando-o como funcionava uma competição de cães pastores, parecia mesmo que o homem estava ficando maluco.
Porém, por mais que questionasse suas formas de proceder, não teve ímpeto de arrumar alguma confusão e ficou apenas observando os rumos que aquilo tudo tomaria. E por mais que Arthur percebesse a estranheza da esposa, como o próprio narrador do filme pontua: “O fazendeiro sabia que pequenas ideias que moem e remoem não devem ser ignoradas. Por que nelas estão as sementes do destino”.
Eis que um dia ocorre uma fatalidade no pasto das ovelhas. Alguns cães selvagens atacam o rebanho, especificamente Maa, que já era um animal mais velho. Babe consegue expulsá-los de uma forma bruta e ainda não vista, com uma coragem maior que ele mesmo. Podendo finalmente livrar suas amigas de serem subjugadas, ele se sente útil em tomar uma atitude.
O problema é que os ferimentos em Maa foram maiores do que ela poderia suportar e, como somente Babe estava no pasto, as suspeitas do assassinato da ovelha caem sobre ele. Não fosse a própria senhora Hoggett ficar sabendo da notícia dos cães atacando a vizinhança, Arthur teria matado o porquinho injustamente. E ele se enche de arrependimento de quase ter cometido um mau julgamento, sem considerar as hipóteses de o porco estar no lugar errado, na hora errada.
Por fim, chega a véspera da competição de cães pastores. Arthur aproveitou-se da ausência temporária da esposa à trabalho para inscrever-se na competição e levaria Babe para disputar com os cachorros. Estava tudo caminhando bem, o porquinho era bem treinado e obediente e não conseguia pensar em nada que pudesse dar errado. E foi quando a gata de Esme achou ser o momento propício para se vingar.
No dia anterior, assim que Arthur colocara Flecha e Babe para dentro de casa, a gata Duquesa, munida de todo seu preconceito e achando-se muito superior ao porquinho para dividir o ambiente com ele, decidiu enfiar as unhas em seu focinho. Diante de tamanha injustiça, o fazendeiro não hesitou em coloca-la para fora e então seu plano de vingança começou.
Duquesa conseguiu a proeza de entrar sorrateiramente dentro de casa e, assim que Arthur foi se deitar e Flecha saiu do lado do porquinho, deslizou sorrateiramente, munida de uma voz suave, dizendo coisas que tantos outros animais nunca disseram a Babe antes. Seu discurso começa rebuscado, pedindo desculpas por ter lhe arranhado, alegando ser “coisa de gata”.
Então Babe começa a ser traído por sua inocência. Ele vai se deixando prender aos poucos nas armadilhas verbais de Duquesa, que segue falando: “Eu não sei se você sabe que os outros animais estão rindo de você. (…) Eles dizem que você esqueceu que é um porco, não é tolice? E dizem que você nem sabe para que servem os porcos”. E, de fato, o porquinho não fazia a menor ideia de outra função que pudesse desempenhar além de “ficar aqui e comer tudo” ou ser uma espécie de porco de pastoreio, que é o que estava fazendo ultimamente.
A gata, assim como Rex, estava adaptada a pertencer à uma classe superior de animais. E, para ela, era ultrajante ver um porco deitado junto à lareira, lugar esse que costumava ser seu. Então ela o diminuiu com a força bruta e foi punida pelo dono. Agora, então, faria com Babe mais ou menos o que Flecha o orientara a fazer com as ovelhas. Abusar, ofender, insultar, mas sem se deixar ser percebida.
Ela explica sua função, a função dos cães e de outros animais, e o faz concluir que, assim como os patos, porcos também não possuem serventia. Então, se os amos criam aves para comê-las, logo, criariam os suínos para a mesma coisa. “Talvez seja a mais nobre de todas as serventias, se pensar bem nisso”, Duquesa completa, tentando camuflar seu veneno. Assim que Babe sai atordoado em busca de Flecha, a gata clama seu lugar à beira da lareira e adormece, sem preocupar-se com o que iria acontecer ao porquinho.
No momento em que vê Babe, Flecha começa imediatamente a secá-lo da chuva e, no momento em que ele lhe pergunta se porcos são feitos para comer, a primeira coisa que questiona é “quem lhe disse isso?”, mas Babe continua falando, extremamente magoado, sobre todas as coisas que a gata lhe disse.
Incapaz de mentir para Babe, a cadela confirma as coisas ditas pela gata. Não houve antes um porco que Flecha soubesse que não esteve ali para morrer, então como poderia prometer ao porquinho que no final, tudo seria diferente? Dominado por uma tristeza infinita, ele se retira para o fundo do celeiro para, posteriormente, fugir, assim como Fernando fizera. Somente no dia seguinte, com a ajuda de Rex, Arthur consegue encontra-lo já resfriado e desidratado.
É a primeira vez que vemos alguma demonstração de afeto de Rex para Babe. Aparentemente tocado pela preocupação de Flecha, ou preocupado com o desempenho do porquinho na competição, ele lambe seu focinho tentando animá-lo, demonstrando que essa situação de classes na fazenda não é tão importante quanto julgava ser anteriormente.
Então temos a cena musical do fazendeiro, desta vez ele que se empenha para agradar o porco, numa total inversão de papéis. Sendo Arthur bom e justo, como costumava ser, mostrava a Babe, sem precisar lhe amolecer com palavras, que certamente seu fim não seria em uma panela. E isso foi o suficiente para fazer o porquinho reagir e ficar de pé, pronto para exercer seu papel com porco pastor.
Assim que chega ao festival onde haverá a competição, Babe tenta falar com as ovelhas e suas tentativas gentis são todas em vão. Flecha tenta intervir e gritar, ameaça-las, e obtém exatamente o mesmo fracasso. Ela conta à Rex e preocupa-se com a reputação do fazendeiro, que irá parecer um idiota se o porquinho fracassar.
É então que Rex decide correr de volta à fazenda e pedir a ajuda das ovelhas. Assim como Flecha fizera quando Maa morreu e ela precisava saber exatamente o que havia acontecido, ele agora ia até o pasto conversar civilizadamente com aquelas que passara a vida toda gritando e mordendo.
Após explicar toda a situação com a maior calma e paciência que conseguiu, Rex teve de concordar (meio contrariado) com meio mundo de solicitações das ovelhas, como “nos tratar bem” e “não morder”, pois, como podia constatar, de fato, não eram animais burros. E estava aprendendo à duras penas que seu lugar consagrado não passava de uma regalia, algo que lhe fora dado de forma hereditária e não baseado em verdades absolutas.
Assim que obtém as promessas que desejavam, as ovelhas transmitem uma senha secreta ao cachorro, uma série de palavras que fará com que os animais do campeonato ouçam e acatem às ordens de Babe. Então Rex corre, o mais rápido que pode, enquanto Arthur é julgado pelo comitê dos juízes, que estão decidindo se validarão ou não sua participação no concurso.
Não há uma regra que impeça outros animais além de cães de participar do torneio, porém, os juízes julgam como uma espécie de ofensa ou gozação a inscrição do porco e, mesmo sendo o homem sério e conhecido que é, Arthur passa por uma série de represálias antes de ser autorizado a competir.
O momento que segue a sua saída da sala dos juízes é composto por uma multidão que se abre conforme ele e Babe traçam um caminho. Risos, piadas, dedos apontados, ofensas, tudo vale para desmerecer um concorrente que tenha a audácia de trazer um animal tão inferior à um torneio de cães de raça renomados e com pedigree. E em nenhum momento Arthur baixa a cabeça, pelo contrário, anda com passos firmes e sérios até seu local no centro do gramado.
Ainda há tempo para que Rex consiga entrar correndo no campo, driblando seguranças para transmitir a famigerada senha à Babe. Assim que termina de dizer ao porquinho tudo que as ovelhas ditaram, o cachorro sai e coloca-se ao lado de Flecha, que observa ansiosa, aguardando pela apresentação de seu filhote adotado.
E assim que o cronometro inicia, Babe corre pelo campo e desempenha uma performance excepcional. Em silêncio, sem gritarias, mordidas e com seu dono completamente calado, o porquinho guia as ovelhas e conquista cada uma daquelas pessoas que lhe apontaram como ofensa minutos atrás. Consegue até mesmo emocionar a senhora Hoggett, que assistia a tudo aos prantos na televisão do hotel onde estava hospedada.
Ganhando nota máxima de todos os juízes, mergulhados em suas próprias reflexões sobre o pré-julgamento realizado, Babe vence o campeonato. Com essa vitória, ele desconstrói a imagem de todos os porcos, quebra as imposições da fazenda e conquista seu próprio lugar no mundo como um porco pastor, filhote de uma cadela e amigo das ovelhas. Assim como Fernando, lutou contra seu destino limitado de virar parte da ceia de Natal e conseguiu criar sua própria utilidade, fazendo algo que amava e achava divertido.
Nada disso seria possível se não tivesse o bom coração que tinha, uma visão sem preconceitos e, acima de tudo, esperança. E é nesse último momento que vem o reconhecimento do fazendeiro, sempre com poucas palavras, mas sabendo exatamente o que dizer.
“Arrasou, porco. Arrasou. ”